Do “golpe de estado” ao “golpe de estado”

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Do “golpe de estado” ao “golpe de estado”

Do “golpe de estado” ao “golpe de estado”

A capacidade de todos os políticos de usar a linguagem e a retórica, especialmente em tempos de crise e às vésperas de eleições, para promover seus próprios interesses partidários, corporativos, sindicais e até pessoais, é proverbial. Testemunhamos isso com particular intensidade e decepção neste momento, durante a problemática e torpedeada reforma trabalhista apresentada pelo governo ao Congresso e na recente recusa do Senado em convocar a Consulta Popular (CP). Portanto, vale a pena analisar os excessos retóricos e jurídicos, que chegam a negar a realidade e o que é óbvio para todos.

Hannah Arendt já havia lucidamente observado isso em seu ensaio "Mentir na Política" : "A negação deliberada da verdade factual — a capacidade de mentir — e a capacidade de mudar os fatos — a capacidade de agir — estão interligadas", e mais adiante acrescenta: "A ação é, naturalmente, a verdadeira matéria-prima da política". E é justamente disso que se tratam as reformas trabalhista e da saúde: ação política e mobilização social, para tornar o Estado Social de Direito uma realidade, pois só assim ele deixaria de ser uma promessa constitucional sempre adiada, como já acontece há 34 anos.

O Cockpit do Senado

Sem dúvida, na sessão da última quarta-feira, 14 de maio, o Senado negou o CP por 49 votos a 47, em meio a uma sessão caótica e circense, mais típica de uma tribuna que, como vimos em todos os noticiários televisivos e nas fotografias dos jornais, nada teve a ver com uma deliberação, pois foi uma explosão de gritos, insultos e exclamações que obscureceram uma decisão política onde o que estava em jogo era a real validade do artigo 3º da Constituição Política : " A soberania reside exclusivamente no povo, de quem emana o poder público. O povo a exerce diretamente ou por meio de seus representantes, nos termos que a Constituição estabelecer". Não há dúvida de que essa maioria de Pirro de dois votos ignorou a primeira parte do referido artigo porque impediu a todos nós, como cidadãos ou povo, de exercer nossa soberania de forma direta. O Senado apropriou-se da soberania exclusiva com base no Artigo 104 da Constituição e na Lei Orgânica nº 1.757 de 2015, Artigo 20, Seção "D", que efetivamente exigem sua aprovação para a vigência da Constituição. Assim, o princípio de que "a soberania reside exclusivamente no povo" — isto é, em todos os cidadãos ou no povo — tornou-se letra morta, pois dois senadores a apropriaram e confiscaram. Teríamos então que concluir que a soberania reside no Senado, não no povo ou nos cidadãos.

Conclusão: O chamado " País Político" impedia a expressão do "País Nacional", como Gaitán afirmava já em 1946: "Na Colômbia, existem dois países: o país político, que pensa em seus empregos, em sua mecânica e em seu poder, e o país nacional, que pensa em seu trabalho, em sua saúde, em sua cultura, todos eles negligenciados pelo país político. O país político tem caminhos diferentes do país nacional. Que drama tremendo na história de um povo!" Essa "democracia representativa" do "País Político" negava e anulava, na realidade, o exercício e a expressão da democracia participativa por meio da Consulta Popular. Tal é a verdade factual e normativa que prevalece, que corrobora uma verdade bem conhecida e lapidar expressa por Ferdinand Lasalle em sua famosa palestra O que é uma Constituição?: “Os problemas constitucionais não são, primariamente, problemas de direito, mas de poder: a verdadeira Constituição de um país reside apenas nos fatores reais e efetivos de poder que governam esse país, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis ​​exceto quando dão expressão fiel aos fatores de poder prevalecentes na realidade social.”

Um Congresso contra os trabalhadores

Justamente por isso, esse "País Político" arraigado, representado no Congresso, não teve a vontade de cumprir o Artigo 53 da Constituição Política, que, durante 34 anos, o obrigou a legislar em favor dos trabalhadores, como é exigido em todo Estado Social de Direito, "fundado no respeito à dignidade humana, no trabalho e na solidariedade de seus constituintes e na prevalência do interesse geral". Mas não o fez porque a maioria dos congressistas desse "País Político" representa o verdadeiro poder exercido, nas cidades e no campo, por minorias privilegiadas. Assim, é oportuno transcrever o artigo 53 na íntegra para confirmar a razão pela qual o Estatuto do Trabalho não foi editado: "O Congresso Nacional editará o Estatuto do Trabalho. A lei correspondente levará em conta, no mínimo, os seguintes princípios fundamentais mínimos: Igualdade de oportunidades para os trabalhadores; salário mínimo vital, proporcional à quantidade e à qualidade do trabalho; estabilidade no emprego; irrenunciável aos benefícios mínimos estabelecidos nas normas trabalhistas; poderes de transigir e conciliar sobre direitos incertos e discutíveis; situação mais favorável ao trabalhador em caso de dúvida na aplicação e interpretação das fontes formais do direito; primazia da realidade sobre as formalidades estabelecidas pelos sujeitos das relações de trabalho; garantia da seguridade social, da formação e do descanso necessário; proteção especial à mulher, à maternidade e aos trabalhadores menores. O Estado garante o direito ao pagamento pontual e ao reajuste periódico das pensões legais. As convenções internacionais do trabalho devidamente ratificadas fazem parte da legislação interna. A lei, os contratos, os acordos e convenções de trabalho não podem atentar contra a liberdade, a dignidade humana ou os direitos dos trabalhadores."

Prevaricadores por omissão?

Passaram-se 34 anos e o Congresso Nacional não cumpriu o disposto no artigo 53. Tal negligência constitui uma espécie de prevaricação por omissão, segundo o artigo 414 do Código Penal: O servidor público que omitir, retardar, recusar ou negar ato próprio de suas funções, incorrerá em pena de reclusão de trinta e dois (32) a noventa (90) meses, multa de treze inteiros e trinta e três (13,33) a setenta e cinco (75) salários mínimos mensais legais vigentes, e inabilitação para o exercício de direitos e funções públicas por oitenta (80) meses. E assim é, pois o artigo 133 da Constituição determina que todos os "Membros dos órgãos colegiados eleitos diretamente representam o povo, devendo agir em consulta com a justiça e o bem comum". Uma ação que os parlamentares omitiram até hoje, pois, além de consultarem excepcionalmente a "justiça e o bem comum", o que a maioria deles fez foi representar interesses partidários e clientelistas, organizações empresariais, sindicais e até criminosas, em parte graças à indolência, à ignorância ou às necessidades prementes dos cidadãos que os reelegem a cada quatro anos, presos em suas redes clientelistas, burocráticas e assistencialistas. É por isso que agora impedem a todos nós, cidadãos ou pessoas, de decidir diretamente em referendo sobre "justiça e bem comum" nas relações de trabalho e no sistema de saúde. Negam-nos a soberania e nos tratam como servos! Como se fôssemos incapazes de discernir sobre a justiça e o bem comum! É assim que nos impedem de ser um verdadeiro fator de poder. E, para se perpetuarem no Congresso, agora todos cantam um coro estridente e encenam a ópera cômica de serem "defensores e salvadores da democracia!" contra um suposto "golpe de Estado" iminente do Poder Executivo, quando este anuncia que convocará o referendo por decreto, mas também que se submeterá à decisão do Tribunal Constitucional sobre a matéria.

Do “Golpe de Opinião” ao “Golpe de Estado”

Sem dúvida, este "País Político" sempre soube usar a gramática do poder com eufemismos engenhosos, como quando o líder liberal Darío Echandía legitimou o golpe de Estado de Gustavo Rojas Pinilla em 1953 com a expressão "Golpe de Opinião" [i] . Posteriormente, chamaram de "Democracia" a fórmula da Frente Nacional, aquela disputa pontual entre liberais e conservadores que dividiu o Estado por 16 anos em benefício do "País Político" e deu origem à guerrilha no contexto internacional da Guerra Fria. É por isso que agora todos cantam a melodia cacofônica do "Golpe de Estado" para esconder o fato de que, durante 34 anos, desferiram um golpe mortal no Estado Social de Direito e na real validade da Constituição de 1991, utilizando formalidades jurídicas, cláusulas e interpretações de "constitucionalistas". Especialistas que desrespeitam o espírito da Carta de 1991 com argumentos falaciosos como a "independência dos poderes públicos", "freios e contrapesos", "segurança jurídica" e a invocação de um "Estado de Direito" e de um quadro institucional que não garantiu os direitos fundamentais de milhões de colombianos, a quem agora apelam para defendê-lo contra uma suposta ditadura executiva, mas também lhes negam voz e decisão na Consulta Popular em nome da democracia e da estabilidade institucional. Finalmente, para impedir que esses cidadãos se expressem sobre as questões mais vitais, como o direito ao trabalho e à saúde, apressam-se agora a aprovar a reforma trabalhista do governo, que até há poucos dias consideravam populista e contraproducente. Que senadores diligentes e coerentes nós temos! Só quando viram que o povo foi às ruas e poderia responsabilizá-los nas próximas eleições de 2026 é que levaram a sério a reforma trabalhista! Por isso abortaram a Consulta Popular e agora falam em "golpe de Estado". O resto é lixo constitucional e jurisprudencial que condenará o PC ao esquecimento, visto que existe a possibilidade de uma transação de última hora entre o Executivo e a oposição, tudo no interesse de preservar aquela sacrossanta "estabilidade institucional democrática e o Estado de Direito", que permitirá a todos serem reeleitos em 2026. Assim, o "País Político" prolonga indefinidamente sua vida às custas do "País Nacional". Pouco importa que esteja morrendo sob o domínio de poderes de fato que o confinam, o extorquem e assassinam seus líderes, como Aurelio Araujo, do povo AWA, e seus dois guarda-costas da Unidade Nacional de Proteção (UNP), Jesús Albeiro Chávez e Jackson Solarte, em fatos ocorridos em uma área rural do município de Ricaurte, próximo ao setor conhecido como Ospina Pérez, no sopé costeiro de Nariño [ii] . “Nos primeiros cinco meses do ano, 71 líderes sociais foram assassinados na Colômbia, e 18 desses casos ocorreram no departamento de Cauca, a área mais perigosa do país para defensores dos direitos humanos”, [iii] segundo o relatório mais recente do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz (Indepaz). De que Estado de Direito esses constitucionalistas, acadêmicos e seus ferozes defensores no Congresso estão falando?

[i] https://www.eltiempo.com/colombia/otras-ciudades/dictadura-de-rojas-pinilla-golpe-de-opinion-que-decepciono-a-colombia-506522

[ii] https://caracol.com.co/2025/06/03/masacre-en-ricaurte-asesinado-lider-indigena-awa-de-narino-y-sus-dos-escoltas/

[iii] https://elpais.com/america-colombia/2025-06-03/con-o-sin-cese-al-fuego-la-paz-total-aun-no-logra-frenar-los-asesinatos-contra-lideres-sociales.html

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